sábado, 14 de setembro de 2013

Outro Brasil: Pensando o país além do FUTEBOL E DO CARNAVAL

                  SEXUALIDADE E IDENTIDADE NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA
                                                                                Margareth Rago
                                                   Departamento de História – IFCH/UNICAMP

Resumo:
   Partindo da análise do antropólogo norte-americano Richard Parker, trabalhada no livro
Corpos, Prazeres e Paixões, e referenciando-me pelo conceito de “dispositivo da
sexualidade” de Michel Foucault, questiono, nesse artigo, o lugar conferido à
sexualidade na interpretação da identidade brasileira, por nossa historiografia das
décadas de vinte e trinta. Considero algumas obras pioneiras dos chamados
“inventores do Brasil”: Retrato do Brasil. Ensaio sobre a Tristeza Brasileira (1928), de
Paulo Prado, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1933), Evolução Política do
Brasil (1933), de Caio Prado, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda.
Destaco o silêncio desses autores em relação aos movimentos sociais dos
trabalhadores, no período, assim como em relação ao feminismo, acreditando que
esses subvertem, em grande parte, a imagem então produzida do povo brasileiro como
“triste”, sensualizado e preguiçoso.












O sentido sexual da colonização
    Caio Prado Jr, com suas obras Evolução Política do Brasil, (1933) e
Formação do Brasil Contemporâneo (1942), inaugura a tendência
marxista de interpretação histórica, apontando para a infra-estrutura
econômica como o lugar privilegiado de inteligibilidade da História. O
historiador inicia o segundo livro citado, com um capítulo sobre o
“Povoamento”, em que focaliza a constituição sexual da população, já
que a relação sexual permite a miscigenação das raças e o surgimento
da população. Ela é, pois, condição de possibilidade de todas as demais
dimensões da vida em sociedade, isto é, das relações produtivas
abordadas nos capítulos denominados “Vida Material” e da “Vida Social”.
Nesse sentido, a sexualidade está na base da economia e da sociedade,
já que é da fusão sexual produzida pela mistura das raças que nasce o
povo brasileiro.
   Aqui, Caio Prado reproduz as teses conservadoras e moralistas de
Paulo Prado, seu tio, e de Gilberto Freyre, assumindo uma leitura
evolucionista da formação histórica brasileira, considerada hoje bastante
controversa e ingênua. Segundo ele,
   
“A licença dos costumes, que sempre foi a norma do Brasil-colônia,
(...) teve ao menos esta contribuição positiva para a formação da
nacionalidade brasileira: e graças a ela que foi possível amalgamar e
unificar raças tão profundamente diversas, tanto nos seus caracteres
étnicos como na posição relativa que ocupavam na organização
social da Colônia” (PRADO JUNIOR, 1942: 93).

 
   Não é, pois, por acaso que o historiador reproduza literalmente as
teses do sociólogo pernambucano, no capítulo intitulado “Raças”. Aí, o
marxismo dá lugar a outro tipo de análise, de cunho fortemente
positivista e darwinista em que, ao contrário do autor que reproduz,
trata das superestruturas, consideradas secundárias, pois determinadas.
Destaco este capítulo, em que Caio explica que o “cruzamento das
raças” foi o que mais contribuiu para a absorção do indígena, o que se
deu não por providência oficial, mas pelo “ impulso fisiológico dos
indivíduos de uma raça de instinto sexual tão aguçado como a
portuguesa” (PRADO JUNIOR, 1942: 98). Aliás, a mestiçagem, “signo
sob o qual se forma a nação brasileira, e que constitui seu traço
característico mais profundo e notável, foi a verdadeira solução
encontrada pela colonização portuguesa para o problema indígena”.
Vale, nesse sentido, acompanhar suas próprias palavras mais
detidamente:

“A mestiçagem brasileira é antes de tudo uma resultante do
problema sexual da raça dominante, e por centro o colono branco.
Neste cenário em que três raças, uma dominadora e duas
dominadas estão em contato, tudo naturalmente se dispõe ao sabor
da primeira, no terreno econômico e social, e em conseqüência, no
das relações sexuais também” (PRADO JUNIOR, 1942: 110).
O branco, portanto, afirma o autor,
“dirige assim a seleção sexual
no sentido do branqueamento”.

   A mestiçagem decorre, pois, de uma qualidade excepcional do
português, sua facilidade em se cruzar com outras raças. Novamente
parafraseando Freyre, o historiador explica que isso se deve grande
parte à forma da emigração dos colonizadores do sexo masculino, que
vieram sós. “A falta de mulheres brancas sempre foi um problema de
toda colonização européia em territórios ultramarinos, (...)” (PRADO
JUNIOR, 1942: 103). Logo, o colono foi forçado a procurar aí a
satisfação natural de suas necessidades sexuais, para o que não
enfrentou grandes dificuldades.

“Aliás, particularmente, no caso da índia, é notória a facilidade com
que se entregava, e a indiferença e passividade com que se
submetia ao ato sexual. A impetuosidade característica do português
e a ausência total de freios morais completam o quadro: as uniõe
s
mistas se tornaram a regra” (PRADO JUNIOR, 1942: 104).

   É interessante observar que a despeito de toda a concepção de
História fundada no materialismo histórico e dialético, utilizada para
construir sua interpretação da “realidade nacional”, o autor incorpora as
análises e os preconceitos difundidos pela documentação em que se apóia, seja a que elaboram os viajantes e os colonizadores, seja a que
divulgam os historiadores e os cientistas sociais de sua época. E, talvez,
mais interessante ainda seja notar como a própria estruturação do livro
acaba por colocar a sexualidade, considerada em uma acepção mais
abrangente, como fundamento mesmo de constituição da vida em
sociedade, aspecto que o próprio autor chega a comentar, quando diz:

“Toda sociedade organizada se funda principalmente na
regulamentação, não importa a complexidade posterior que dela
resultará, dos dois instintos primários do homem: o econômico e o
sexual” (PRADO JUNIOR, 1942: 345).


   Novamente, a sexualidade é referida como centro de explicação da
organização social e como lugar privilegiado da leitura que se produz a
respeito do passado e da cultura brasileira.

Concluindo

   Está claro que os/as brasileiros/as se percebem, em grande parte,
através da sexualidade, mas também está clara a dificuldade que as
ciências sociais tiveram em trabalhar a questão, reconhecendo pelo
menos a centralidade que esta assume no discurso científico. O
privilégio do discurso racional sobre outras formas de conhecimento, a
dicotomia teoria/prática, o foco exclusivo nas questões estritamente
políticas e econômicas, menos do que as culturais levaram a que esta
discussão ficasse obscurecida.
   Mais recentemente, as pressões do feminismo, dos movimentos
homossexuais e negro forçam a incorporação de novos olhares e de novos temas. Opera-se como que uma invasão do feminino na cultura: o dionisíaco, o instintivo, o sagrado, o sexual, o corpo passam a ser objeto
de discussão, aceitos como importantes dimensões constitutivas das
práticas sociais e das formas de conhecimento. Retomamos as
problemáticas e os ensinamentos dos historiadores da Escola dos
Annales, preocupados com as “mentalités”, com diferentes
temporalidades e com novos instrumentais conceituais. Mudamos os
temas e os procedimentos de análise, questionando os campos
epistemológicos tradicionais e os instrumentos fornecidos.
   É nesse sentido que a questão do lugar central da sexualidade na
construção da identidade nacional e na interpretação da história
brasileira pode ser enunciada, forçando uma releitura da historiografia.
Produzida num momento de profunda modernização do país, de
crescimento urbano-industrial e de fortalecimento do Estado, esta teve
um impacto bastante forte sobre a construção do passado, transformada
em memória oficial e transmitida sucessivamente de geração a geração.
Inegavelmente, as formas de produção desta História conformaram a
imaginação social, definindo uma identidade nacional muito negativa,
pesada herança que os brasileiros acabam por carregar. Por isso
mesmo, é importante que sejam desconstruídas, refeitas ou
abandonadas.
   Uma outra questão, ainda, parece-me inevitável no confronto com
a tradição historiográfica brasileira. É de se perguntar para quem
olhavam os autores consagrados dos anos vinte/ trinta, de que “povo”
falavam? Se se focalizar a cultura operária do período, as greves e
manifestações que pipocaram entre os anos dez e vinte, nos centros que
se industrializavam no país levam a questionar radicalmente as imagens
negativas construídas sobre os imigrantes estrangeiros e os trabalhadores nacionais, muitos dos quais ex-escravos, que como
sabemos hoje eram explorados ilimitadamente nas inúmeras fábricas e
espaços da produção. E’ de se perguntar de onde vinha a indolência a
que aqueles autores se referiam? De quem falavam eles que não liam
Maria Lacerda de Moura, nem Pagu? O que dizer, ainda, da exploração
do trabalho infantil tão denunciada na imprensa anarquista e socialista
do período, absolutamente ausente de seus discursos?
Para finalizar, creio que se há algum sentido em render
homenagem aos “inventores do Brasil”, certamente é fundamental
considerar que continuam silenciadas as vozes alternativas que, no
mesmo período, se recusaram a aceitar as imagens negativas
projetadas em espelhos misóginos. E mais, é de se perguntar por que os
brasileiros continuam a reafirmar traços estigmatizadores que não os
levam a uma auto-construção pessoal e social positiva e mais saudável?

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