sexta-feira, 13 de setembro de 2013

CCDS: uma experiência comunitária que necessita ser bem e melhor difundida


Lessandra da Silva
Socióloga, Jornalista e Mestre em Administração Pública pela Escola Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EBAPE).


CEARÁ:CONSELHOS COMUNITÁRIOS DE DEFESA SOCIAL

Um dos mais graves problemas hoje no Brasil refere-se ao aumento significativo e generalizado da violência. Estudiosos e especialistas no assun­to reconhecem que as ações nessa área devem partir da construção de uma nova concepção de segurança pública, que tradicionalmente tem sido trata­da somente como uma questão de polícia. Entretanto, as experiências evi­denciam que nem todas as questões de segurança pública são problemas exclusivamente policiais. A promoção de uma segurança pública democráti­ca requer a ação de vários atores sociais e depende da articulação de políticas sociais implementadas em parceria entre governos estaduais e municipais e que envolvam a participação dos cidadãos.
Essa mudança na concepção de segurança pública teve início, no Cea­rá, a partir de 1985, por intermédio da Polícia Militar, que criou os Conse­lhos de Segurança em alguns bairros de Fortaleza. Mas a medida não trouxe os resultados esperados, pois esse canal tornou-se espaço apenas para a de­núncia de ações envolvendo marginais e, algumas vezes, até policiais. Isso colocava em risco os cidadãos que faziam a denúncia, afastando-os ainda mais dos policiais. Considerava-se que a segurança pública era de competência exclusiva da polícia e os cidadãos observavam apenas o efeito repressi­vo à violência. Portanto, era necessário agir de forma mais ampla e de manei­ra preventiva, focalizando a "defesa social".
Pensando nisso, o governo do Ceará, por meio da Secretaria Estadual de Segurança Pública e Defesa da Cidadania (SSPDC), criada em 1997, estabeleceu novas diretrizes fundamentadas principalmente em: integração das polícias, mudança de comportamento do policial, inovação administrativa e tecnológica e parceria entre a polícia e a comunidade.
Para o cumprimento dessas diretrizes várias ações foram tomadas, en­tre elas a criação da Diretoria da Cidadania, dentro do organograma institu­cional da Secretaria. A Diretoria tem a missão de realizar a integração entre os diversos segmentos da comunidade e órgãos da Segurança Pública do Estado do Ceará, sendo também responsável pela formação, acompanhamento e apoio aos Conselhos Comunitários de Defesa Social do Estado do Ceará(CCDS).
O Programa CCDS vem sendo desenvolvido desde fins da década de 90, quando um decreto garantiu sua implementação em todos os municípi­os cearenses, estipulando critérios para sua gestão. O principal objetivo do Programa é o envolvimento das comunidades na construção de uma socie­dade solidária e pacífica. A partir de ações integradas na área social, o Progra­ma soma esforços e divide responsabilidades para o aprimora mento da segu­rança pública e para o combate às causas da violência. Tem como objetivo específico aproximar a sociedade civil e os órgãos de segurança pública, re­vertendo uma relação de desconfiança que sempre permeou a relação entre esses atores sociais.
O principal desafio é consolidar uma mudança de paradigma, no qual o papel da polícia seja transformado por uma mentalidade na qual a forma­ção do policial esteja orientada para a focalização na prevenção da violência, na dimensão pedagógica. Ê importante que esses profissionais se reconhe­çam como agentes promotores da paz. Da mesma forma, a expectativa é de que a comunidade também participe desse processo como co-produtora da harmonia social, a partir da capacitação do cidadão para elaborar, implemen­tar e fiscalizar políticas públicas voltadas à prevenção da violência.
O Conselho Comunitário de Defesa Social é uma instituição formada pelos mais diversos segmentos representativos da comunidade, de um município ou bairro. O processo de formação desses conselhos é democráti­co, sendo permeado por uma ampla divulgação e sensibilização da popula­ção local, que elege os conselheiros para atuar na promoção da "Defesa Soci­al", por meio de ações e projetos ligados às políticas públicas.


OS RESULTADOS DO PROGRAMA

O Programa CCDS tem alcançado resultados importantes e extrema­mente significativos, que integram ações na área econômica, ambiental, so­cial e cultural como forma de prevenção e combate à violência e que alteram a relação entre a instituição policial e a comunidade. Até agosto de 2002, já haviam sido criados cerca de 850 Conselhos (envolvendo diretamente 15.000 mil "voluntários da paz"), que se encontram espalhados pelos 184 municípi­os do Estado, com ramificações que abrangem bairros, distritos, vilas, povo­ados, litoral, serra e sertão do Ceará.
Cada município tem pelo menos um Conselho (sede) que, posterior­mente, de acordo com as especificidades locais, pode disseminar-se pelos bairros com a designação de Conselhos-Satélites. Foram criados ainda, por iniciativa da própria comunidade, apoiados pela Diretoria da Cidadania da Secretaria de Segurança Pública e Defesa da Cidadania, os CCDS Juvenis, com o objetivo de engajar os jovens em ações que buscam a promoção de uma "cultura da paz" e da solidariedade. Atualmente, existem cerca de 300 jovens envolvidos diretamente com os Conselhos, comprometidos com o desenvolvimento de estratégias e operações voltadas para a inserção do ado­lescente num ambiente sociocultural que o mantenha afastado das drogas e da violência.
Cada Conselho atua de forma específica, de acordo com as circunstân­cias locais. Por exemplo: em Caucaia, município situado na Grande Fortale­za, os jovens do CCDS formaram um grupo musical designado "Fazedores da Paz", compondo e cantando músicas que promovam a paz. Num outro bairro, com alta incidência de pichações em prédios, praças públicas e mo­numentos, os conselheiros conseguiram reunir os jovens e canalizar essa capacidade para as artes. *.
Existem vários projetos desenvolvidos pelos CCDS para o público ado­lescente: cursos de música, teatro, artesanato, torneios desportivos, capoei­ra, cursos de iniciação ao mercado de trabalho, cursos de informática, cursos de línguas, seminários, oficinas, entre outros. Um aspecto interessante é que os próprios jovens são os formuladores e executores dos projetos implemen­tados, o que contribui para que eles desenvolvam habilidades gerenciais e para que tenham autonomia e responsabilidade na consecução das ações.
Além disso, outras ações voltadas a esse público vêm sendo desempe­nhadas em articulação com outros órgãos. A Secretaria de Segurança Públi­ca e Defesa da Cidadania, por meio da Diretoria de Cidadania, em parceria com a Secretaria Estadual de Educação, a Associação de Escolas Particulares do Ceará e a Secretaria Estadual de Cultura e Desporto, promoveu em 2002 o III Encontro Estadual: "Estudantes pensando Segurança Pública". Trata-se de um concurso artístico, com participação dos estudantes de escolas pú­blicas e particulares dos municípios cearenses, que tem por objetivo envol­ver os jovens na reflexão acerca da segurança pública.
Os estudantes puderam inscrever seus trabalhos em duas grandes áre­as: Literatura, com a temática: "Um mundo sem violência: vamos juntar forças e dividir responsabilidades"; e Artes Visuais, cujo tema é: "A seguran­ça que queremos, a paz tão encantada".
O Programa também realiza Encontros Regionais entre conselheiros de municípios próximos. Além disso, promove anualmente o Encontro Es­tadual dos CCDS, que tem por objetivo reunir e integrar os conselheiros de todos os municípios do Ceará para trocar experiências, informações, avaliar as ações, divulgar os projetos executados, elaborar novas estratégias, firmar acordos, compromissos e metas para o ano seguinte3, visando a melhoria da segurança pública e o combate à violência.
Trata-se de debater acerca da "Segurança Pública que temos e a que queremos". O encontro tem um caráter interativo e possibilita a discussão integrada de políticas públicas, pois reúne representantes de vários municípios. Esse evento integra a comunidade, as autoridades e instituições da segurança pública e outros órgãos operacionais, representantes dos poderes executivo e legislativo municipal. Na ocasião, o Secretário Estadual de Segurança Pública apresenta os investimentos feitos pelo Estado na área, pres­tando contas à população. Além disso, outros órgãos são convocados para divulgar os programas que vem implementando. Até agosto de 2002, já ha­viam sido realizados quatro grandes encontros estaduais.
Os CCDS também promovem a Caravana da Defesa Social, onde são realizadas atividades de educação preventiva às drogas e à violência. Geral­mente, essas atividades desenvolvem-se nas escolas, com o intuito de reunir pais e filhos. A Caravana da Defesa Social é realizada pela Secretaria e pelos Conselhos, envolvendo as Polícias Civil, Militar e o Corpo de Bombeiros, além de outros órgãos como a Secretaria de Educação (SEDUC), Secretaria de Trabalho e Ação Social (SETAS), Secretaria Estadual de Ouvidoria Geral e Meio Ambiente, Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e Con­selho Tutelar.
Além de atuar em campanhas preventivas nas escolas, a Caravana en­volve uma ação de repressão ao tráfico de drogas, articulada com operações executadas nos bairros, como forma de identificar pontos de vendas de dro­gas. Os CCDS também foram incluídos num vídeo-educativo, realizado pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), como experiência exitosa de prevenção ao uso indevido de drogas lícitas e ilícitas.


AS PARCERIAS E REALIZAÇÕES DOS
CONSELHOS COMUNITÁRIOS DE DEFESA SOCIAL:
AS ESPECIFICIDADES LOCAIS

O novo modelo de Segurança Pública do Ceará, que vem atuando principalmente na prevenção da violência, criando mecanismos de parti­cipação cidadã na gestão e na articulação de políticas públicas, fundamen­ta-se em sólidas parcerias que vêm sendo definidas e desenhadas ao longo desse processo.
Uma concepção mais realista da segurança pública reconhece a neces­sidade de se ultrapassar o campo exclusivo das forças policiais no combate a violência. Trata-se de uma visão sistémica, integrada e aberta dos problemas da segurança, por meio do envolvimento na gestão da segurança da comuni­dade e de outras agências públicas e civis que prestam serviços essenciais à população. A eficácia na segurança pública depende de ações extra-policiais, tais como o ambiente comunitário e a oferta de serviços básicos como ilu­minação, saneamento, coleta regular de lixo, ocupação ordenada do solo urbano, amplas áreas de lazer e garantias sociais que promovam à cidadania.
Para tanto, não se pode prescindir de estabelecer parcerias e acordos de cooperação entre instâncias públicas estaduais e municipais, instituições privadas e organizações não governamentais sem fins-lucrativos.
Nesse sentido, percebe-se uma forte presença dos CCDS em todas essas frentes. As parcerias são estabelecidas com os governos do Estado e dos municípios, organizações não governamentais, associações comuni­tárias, conselhos setoriais locais, empresários, Sebrae, órgãos do Poder Legislativo e do Judiciário. Várias ações podem ser destacadas na atuação dos Conselhos, mas suas práticas não ocorrem de forma homogénea. Cada CCDS desenvolve suas atividades de acordo com as características socioculturais dos bairros nos quais atuam, a partir de suas próprias de­mandas e potencialidades.
Os espaços onde funcionam os CCDS também se orienta por essa di­versidade. Alguns deles construíram, com recursos da comunidade, uma estrutura que conta com biblioteca para atender à comunidade, amplas salas destinadas às oficinas artísticas e de formação profissional, creches (geral­mente em parceria com a Secretaria Estadual de Ação Social - SETAS), e uma área reservada para o atendimento jurídico à comunidade, realizado por advogados voluntários. Outros alugaram um local e conseguem mantê-lo a partir de parcerias firmadas com empresas, comerciantes e com doações dos próprios conselheiros. Alguns Conselhos funcionam em salas cedidas pelo poder público estadual e municipal. Muitos outros ainda não dispõem de local para realização de seus encontros, que ocorrem em espaços públi­cos, como praças ou "sentados à sombra de uma árvore".
O atendimento às necessidades locais resulta num amplo leque de al­ternativas de ações orquestradas pelos CCDS nas mais diversas áreas de atu­ação. Alguns criaram o "Dia da Ação Cidadã", um projeto que leva às comu­nidades serviços como saúde preventiva, assistência jurídica, emissão de documentos, eventos ligados à prevenção de drogas, divulgados a partir de peças teatrais escritas pelos adolescentes, corte de cabelo, entre outros. Em Juazeiro do Norte, por exemplo, esse projeto ocorre mensalmente, de forma itinerante, pelos bairros do município.
Os CCDS também promovem a cultura e o esporte, quer por meio de oficinas de dança, teatro, música, capoeira, vôlei, futebol etc, ou por meio de eventos como os "Jogos Comunitários", para incentivar a integração en­tre os bairros. Por reconhecer o caráter amplo da questão relacionada à Segu­rança Pública, tais como o acesso a serviços básicos, os CCDS também enca­minham ofícios aos órgãos competentes, solicitando obras para a comuni­dade, como saneamento, iluminação e água.
Entre as realizações, observam-se também atuações na área da saúde, na qual os cidadãos, organizados no CCDS, conseguem ambulância e doa­ção de equipamentos hospitalares. Dessa forma, contribuem para que sejam abertas novas unidades de atendimento à saúde, contando, na maior parte das vezes, com a adesão voluntária de médicos e enfermeiros.
Destaca-se, entre as parcerias realizadas pelos CCDS, o papel estratégi­co destinado à educação. A escola tem servido como um espaço especial para muitas atividades ligadas à prevenção da violência. A Polícia Militar, por meio do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PRO-ERD)5, com apoio do CCDS, tem desenvolvido nas escolas um amplo pro­grama de prevenção às drogas.
Em Sobral, por exemplo, em agosto de 2002, três policiais, especial­mente preparados para essa atividade, estavam envolvidos com oficinas lú­dicas, lidando com 760 crianças e adolescentes nas escolas, com a temática da violência e prevenção às drogas. Além disso, conforme citado anterior­mente, todos os anos tem sido realizado concurso para que os estudantes do ensino médio reflitam sobre a segurança pública.
Alguns conflitos, incivilidades e desordens que geralmente desembo­cam nos órgãos policiais têm sido resolvidos nas sedes dos próprios CCDS, principalmente no que se refere a desentendimentos familiares e à ocupação de terra. Os conselheiros reúnem pais e filhos, maridos e esposas, e servem como mediadores na resolução de conflitos. Quando o jovem está envolvi­do com gangues, conselheiros do CCDS e delegados reúnem-se com os familiares e buscam soluções. Geralmente os conselheiros fazem acompanhamento do desenvolvimento desses jovens na escola, encaminhando-os para cursos profissionalizantes, oficinas de dança, capoeira, buscando apro­ximá-los de outros adolescentes envolvidos com o CCDS juvenil, compro­metidos com a disseminação da "cultura da paz".
No que concerne à geração de emprego e renda, alguns CCDS possu­em núcleos gestores que buscam a promoção de emprego, por meio de contatos com empresas e encaminhamento para vagas disponíveis no mercado, servindo como uma central de informações. Além disso, algumas obras rea­lizadas na comunidade procuram envolver as pessoas desempregadas como forma de gerar renda. Os CCDS também promovem cursos de capacitação profissional, arrecadação de alimentos e distribuição de bolsas alimentícias para famílias em risco.
Alguns CCDS criaram o que chamam de "Amigos do Prato": distribuição diária de refeições em comunidades extremamente carentes. Essa ação conta ainda com dicas nutricionais, por meio do reaproveitamento de ali­mentos que geralmente não são utilizados em sua plenitude.
Entre outras realizações dos Conselhos destacam-se: promoções de cam­panhas sobre lixo e esgoto, doação de sangue, conscientização sobre direitos e deveres do cidadão, direitos da mulher, distribuição de cartilhas para ori­entar a população quanto à prevenção de assaltos à residência e ao comércio e mutirões de limpeza e de construção de casas. São realizadas também ca­minhadas pela paz. Os CCDS exercem ainda um papel fiscalizador nas po­líticas públicas, não apenas na área de segurança. Um exemplo é o controle que fazem do Programa Bolsa-Escola.
Os CCDS também participam de medidas mais diretamente voltadas para os órgãos específicos da segurança pública. Promovem encontros en­volvendo comerciantes, conselheiros e policiais para a discussão de estraté­gias de prevenção à criminalidade local. Identificam, em algumas circuns­tâncias, pontos onde ocorre maior incidência de violência e informam aos policiais. Algumas vezes solicitam a implantação de postos policiais e o au­mento de seu efetivo.
Em relação a essa área específica de atuação dos Conselhos Comunitá­rios de Defesa Social diretamente com os órgãos de segurança, destaca-se o engajamento da comunidade no atendimento de necessidades básicas e ime­diatas para a prevenção e combate à violência. Em alguns municípios, a co­munidade, por meio dos CCDS, organizou-se para que a infra-estrutura dos departamentos e unidades da polícia tivessem melhor qualidade para uma atuação mais eficaz. Nesse sentido, os Conselhos conseguiram doações de computadores, obtiveram recursos destinados à compra de motos para os policiais que arrecadaram fundos para a melhoria das delegacias
Acopiara, um município situado a 360 km de Fortaleza, é um exemplo dessa mobilização para melhorar as condições dos órgãos de segurança pública. O CCDS local se uniu à Prefeitura e aos promotores públicos para construir uma delegacia de polícia mais moderna. Anteriormente, a delegacia estava situada num prédio alugado, gerando ônus de R$ 500,00 mensais ao Estado. Já o posto policial, sob responsabilidade da Prefeitura, acumulava aluguéis atrasados. O CCDS promoveu sorteios e arrecadação de verbas e de material de construção entre a comunidade local. Tais eventos possibilitaram arrecadar R$ 74 mil. A Prefeitura cedeu o terreno e destinou R$ 54mil para a compra de equipamentos. Se a delegacia fosse construída com recursos públicos, a previsão de custos estimada era de cerca de R$ 500 mil. A nova delegacia foi erguida com a mão-de-obra dos presos da cadeia pública, que foram remunerados e tiveram as penas revistas. A Prefeitura destina R$ 4 mil mensais para auxiliar a Polícia Militar e Policia Civil da cidade com despesas com pneus, gasolina, alimentação e pagamentos de funcionários de serviços gerais. Esses recursos para a manutenção da delegacia são gerenciados pelos conselheiros do CCDS.
Em Camocim, município situado no litoral cearense, uma ação desenvolvida pelo CCDS local também demonstra a diversidade dos projetos implementados. Como a cidade não oferecia muitas oportunidades de trabalho, vários homens tiveram que se deslocar para outras regiões a procura de emprego. Muitos nunca mais retornaram, abandonando suas famílias, o que resultou em prostituição de mulheres e crianças. O CCDS aproximou-se desse grupo e promoveu cursos de costura. Atualmente essas mulheres se organizaram em uma cooperativa e estão exportando seus trabalhos. O conselho local também tem buscado desenvolver um planejamento municipal que impulsione a potencialidade turística da região. Muitas crianças e adolescentes que vivem na rua estão sob acompanhamento dos conselheiros, responsável pela realização de cursos de surf e de guia turística mirim.


ASPECTOS INOVADORES

O programa apresenta um amplo leque de dimensões inovadoras, principalmente porque contempla a proposta de integrar a política de segurança pública às políticas sociais e ações comunitárias. Identifica-se uma mu­dança de foco, pois a noção de segurança pública se expande, incorporan­do novos atores. Mulheres, crianças, adolescentes, detentos, famílias e pes­soas em risco social tornam-se alvos e protagonistas de projetos específi­cos voltados para a proteção de direitos e a conscientização quanto aos deveres da cidadania.
O novo modelo de Segurança Pública do Estado do Ceará, parte dele representado pelo programa CCDS, é movido por princípios e pressupostos distintos daqueles que tem caracterizado as políticas de segurança tradicio­nais, concentradas exclusivamente na ação de polícia. Portanto, torna-se ino­vador por assinalar a importância da participação da sociedade civil na esfera da segurança pública e por ampliar o escopo do que se tem considerado, tradicionalmente, como segurança pública. Além disso, o Programa tam­bém inova ao definir novos problemas e apontar novos métodos e aborda­gens para enfrentá-los, sem perder a referência do respeito aos direitos hu­manos mas, ao contrário, ressaltando sua importância.
A integração alcançada pelas ações desenvolvidas no âmbito do CCDS ocorre em vários níveis e esferas. O Programa tem sido extremamente bem sucedido na integração entre as Polícias Militar, Civil e Corpo de Bombei­ros, o que representa um grande desafio nas políticas de segurança de outras regiões do Brasil.
O CCDS possibilita a colaboração intersetorial entre agências estatais e civis, pois cada município dispõe de vários conselhos setoriais, seja na área de saúde, educação ou meio ambiente. Assegura um espaço que possibilita uma visão sistémica desses diversos problemas, contribuindo para uma alocação mais eficiente e eficaz de políticas e ações públicas.
O Programa envolve ainda uma articulação intergovernamental hori­zontal, por meio dos Encontros Regionais e do Encontro Estadual dos CCDS, nos quais são debatidos os principais problemas enfrentados pelos Conse­lhos Comunitários de cada município, as formas como foram enfrentados e as metas para o ano seguinte.
Especialmente inovadora é a mudança nas formas de gestão das políti­cas desenvolvidas. Nesse sentido, destaca-se a articulação vertical, envol­vendo os governos estadual e municipal, pois algumas prefeituras têm atuado como parceiras do estado no combate à violência. Tradicionalmente a questão da segurança pública é reivindicada apenas nas esferas do governo federal e estadual, instâncias responsáveis pelas forças armadas e policiais.
No caso do Ceará, percebe-se a atuação do poder municipal e de outras instituições ligadas à sociedade civil.
Conforme demonstram alguns estudos, a ausência ou fragilidade das interações regulares entre polícia e administração municipal é um dos fato-res que limita a promoção de políticas de segurança pública. Os CCDS atu­am como impulsionadores dessa interatividade, aproximando as polícias do poder municipal e da população.
Observa-se que a "integração" envolvida nessa experiência significa mais do que articular as diversas agências responsáveis por serviços públicos es­senciais. Trata-se de romper o isolamento no qual por várias décadas perma­neceram os órgãos de segurança pública, envolvendo instituições policiais e a população em ações conjuntas para promoção da cidadania, preservação de direitos e combate à violência, estrategicamente articulados por um progra­ma voltado para a inclusão social.



A NOVA CONCEPÇÃO DE SEGURANÇA PÚBLICA E OS IMPACTOS SOBRE A CIDADANIA

O novo modelo de policiamento pressupunha, ao contrário do an­terior, flexibilidade organizacional, descentralização, e abertura ao tra­balho conjunto com as comunidades e com outros órgãos de serviço público, implicando ampla reformulação de mentalidades, estruturas e rotinas institucionais.
Esse novo modelo de segurança pública e a implantação dos CCDS inicialmente provocaram fortes resistências tanto dentro das corporações policiais - por implicarem mudanças nas formas de exercício da autoridade e em práticas há muito arraigadas - quanto da parte de setores da população civil que clamavam por repressão pura e simples. Os policiais viam negativa­mente a aproximação*com a comunidade, pois consideravam que os atores sociais não estavam tecnicamente preparados para a problemática e se torna­riam uma "vigília" constante, cobrando ações e pouco contribuindo para a rotina policial.
Esse comportamento contrário à atuação do CCDS ainda existe, mas muitos avanços podem ser apontados. A própria integração entre as polícias não foi tarefa de fácil realização, mas os resultados já se evidenciam. O impacto sobre a cidadania é visível por meio de práticas que resultaram numa nova mentalidade na relação entre os agentes da segurança pública e os cidadãos.
Atualmente, policiais civis, militares, bombeiros, inspetores e delega­dos se engajam voluntariamente nos CCDS. Observa-se também um au­mento crescente na credibilidade e confiança da população nos órgãos de segurança pública. A atuação se faz preventivamente e também sobre grupos marginalizados: presidiários, prostitutas e jovens delinquentes.
Alguns depoimentos tratam frequentemente da eliminação de gangues, a partir da atuação dos Conselhos. O presidente de um dos Conselhos con­tou à autora que em seu bairro havia três gangues, uma delas chamada de "renascidos do inferno". A partir da implantação do CCDS Juvenil, foram realizadas reuniões envolvendo os "gangueiros", policiais, delegados e pais. Firmou-se um pacto pela paz, e os adolescentes passaram a promover even­tos no CCDS. Assim, a negociação de conflitos, que passa a ser realizada no âmbito dos CCDS, faz dessa instituição um "amortecedor da violência".7
Os resultados mostram a eficácia do Programa, pois se verifica a redu­ção da criminalidade: menor incidência de ações contra o património públi­co (pichações, lâmpadas e telefones públicos quebrados), regiões que estão há três anos sem crimes envolvendo mortes, eliminação de gangues, entre outros. Um dos líderes de um CCDS situado num bairro com elevado nú­mero de pessoas em situação de risco social relatou que a região era muito violenta e que depois da implantação do CCDS o local há três anos não registrava homicídios.
O quadro abaixo demonstra a queda nos índices de criminalidade num conjunto de 11 municípios cearenses, pertencentes a uma área circunscrici-onal da Polícia:

Ocorrências
1999
2000
2001
2002
Homicídio arma de fogo
27
24
17
08
Roubo a cargas
12
00
07
02
Roubo a pessoas
41
21
18
13
Roubo a carro pagador
01
00
00
00
Armas de fogo apreendidas
14
139
163
72
Armas de fogo apreendidas
1067
2326
3526
1120
Tráfico de drogas
11
07
08
05

A partir da implementação do CCDS nesses municípios, em 2002, per­cebe-se uma queda no número de homicídios. O grande número de armas apreendidas é atribuído à participação da população, que passou a denunciar os infratores. Muitos crimes ocorriam na forma de violência familiar. A atu-ação do CCDS com as famílias é considerada fundamental para a diminui­ção da violência doméstica, principalmente com relação à mulher.
Extremamente relevante é o fato de a promoção da cidadania ocorrer também pelo conhecimento que o CCDS possibilita a respeito do funcio­namento dos órgãos públicos. Adultos e adolescentes que antes não sabiam quais instâncias procurar para exercer sua cidadania, atualmente têm auto­nomia para tomar decisões e ações com resultados diretos voltados para o bem-estar social. O CCDS indica para os cidadãos os percursos e procedi­mentos racional-legais necessários para a promoção de seus direitos e deve­res. Segundo a representante da Diretoria da Cidadania, a população "não agia porque não sabia como agir".
Modelos como o CCDS geram resistências nas polícias (por conta da
tradição do militarismo assentado na rigidez e na hierarquia). Qualquer governo disposto a implementar tal iniciativa deve estar preparado para essas resistências e para a pressão por resultados imediatos e espetaculares de moralização da polícia e combate ao crime, até por parte da opinião pública.


OS PONTOS FORTES E OS DESAFIOS DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA DEMOCRÁTICA

Outros aspectos positivos do Programa também merecem destaque. Apesar de o apoio do secretário estadual ser apontado como fator estratégico para o alcance do Programa, já existe legislação que garante a existência dos CCDS. Além disso, as comunidades estão fortemente organizadas, o que contribui para a continuidade da iniciativa, independentemente de quem esteja à frente da Secretaria de Segurança Pública e Defesa da Cidadania.
As parcerias também são fundamentais, pois ocorrem verticalmente e horizontalmente. Nesse sentido, a cooperação dos municípios na promoção de segurança pública é algo inovador e um ponto estratégico para que as ações possam ter mais eficácia.
A desburocratização e descentralização das atividades contribuem para o sucesso do Programa. A isenção político-partidária da proposta é apontada pelos participantes da iniciativa como ponto fundamental para o êxito dessa experiência de democracia participativa na gestão da segurança pública. A disposição ao diálogo por parte de alguns segmentos das corporações polici­ais se ampliou nos últimos anos.
O protagonismo de ações de defesa social por parte dos policiais mostra a mudança de comportamento. A capilaridade e amplitude das ações de defesa social e número de beneficiários do progra­ma também se constituiu como aspecto forte.
Apesar de grandes avanços, existem grandes dificuldades. O Programa tem como meta a capacitação técnica de todos os seus conselheiros. Entre­tanto, os recursos destinados diretamente à Diretoria de Cidadania, oriun­das do orçamento anual da própria Secretaria, somam R$ 80 mil.8 São gastos com pagamento das despesas das viagens de monitoramento realizadas pela equipe da Diretoria da Cidadania e com o Encontro Estadual Anual de Con­selheiros.
Os cidadãos apontam a necessidade de maior investimento mate­rial, por parte do governo estadual, em viaturas e melhoria da infra-estrutura das delegacias. Algumas cidades reforçam a importância de aumentar o efetivo policial. Há necessidade, portanto, de ampliar os recursos para a preven­ção à violência.

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